Eu criei-te dentro de mim, somente.
Talvez, esteja à procura o que ainda não existe
Talvez, esteja a desejar o que ainda não foi construído
Talvez, tenha pensado que descobri alguém que não existe
Talvez, seja ainda menina neste mundo de sentimentos cruéis...
Somos responsáveis pela expectativa que criamos sobre alguém logo, também pela dor que ela nos causa.
Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo.
"Faz de conta que te sentes mesmo bem com isso"
Que acreditas que curas as feridas de dentro a partir do exterior.
Nao faz mal, a sério, importa-me pouco se farás ou nao a operação ao peito, se retocas-te os pés de galinha. faz-te sentir melhor, dizes, a quem te quer ouvir.
E baixinho ao espelho, dizes e convences-te.
Nao , mal nenhum, nao me compreendas mal, sim, percebo a ideia, a vida é tão curta para andarmos aqui a sofrer um corpo que nao queremos, que já nao nos reflete .
O problema querida, é que não sabes o que fazer a seguir.
Se contas e admites, demonstras que já não prestavas e tiveste de recorrer à oficina.
Se escondes, vives no pânico de que te descubram cicatrizes, que não acreditem que foi só ginásio e alimentação equilibrada. e mais.
Tentas converter-te que foi só desta vez, mas não tardarás a encontrar-te mais defeitos, a marcar nova recauchutagem.
Nao tem mal nenhum, naturalmente, nada me tira o orgulho de te levar pelo braço, enquanto te assobiam pelas costas.
O problema, minha querida, é que nos cruzamos com tantas e tantas mulheres que se começam a parecer contigo, vindas da mesma fábrica, e na noite dos nosso lençóis já não passo a mão pelos teus seios mas por mais uma obra do doutor.
É o teu peito mas podia ser daquela que vimos hoje na praia.
E sabes bem que recorro também eu a ajudas, agora que o Outono do corpo me bate à porta ,um comprimido e aí estou eu.
Mas ainda que nos larguemos depois de tantos minutos, suados, saciados, sabemos ambos, em silencio, que não estivemos só os dois na cama.
Fazemos então de conta que nos sentimos melhor, que tudo isto existe para nós aproveitarmos.
Acontece que via outro dia uma serie na televisão (já te tinhas deitado) e não gostei da letra da canção do genérico: "Põe-me bonita. Um corpo perfeito, uma face perfeita, uma perfeita...mentira."
A gente não gosta de ouvir o que nos atormenta.
Fiquei um nadinha para ali parado, furioso com esta gente que não sabe o que se sofre quando o corpo já não nos quer, isto de fazer musiquinhas moralistas é muito bonito para quem gosta de ser ver, para quem não precisa, não é, ternura? Ainda assim - que queres? - dei por mim a ir buscar fotos antigas, onde estamos nós e o corpo que andas a lutar por conservar.
Queria ver-te quando eras tu e não um pedaço do doutor Mendes mais outro bocado do doutor Vasques, quando ainda não ias semanalmente injectar-te entre as sobrancelhas, a fim de espantares as duas rugas fundas que te andam a marcar a testa.
As pessoas maldosas, minha querida, não entendem esta equação simples: se gostares de te ver, gostas mais de ti, logo gostas mais dos outros, logo a nossa relação melhora.
É por isso que não compreendo que a ferida não sare, que não goste de te ver assim, nessa angustia permanente, um estado de nervos constante, a perguntares-me a cada minuto como estás, a cada jantar fora a medires o que pensarão de ti as pessoas do restaurante.
Confunde-me que te preocupe tanto o olhar dos outros.
Porque pensas que olham para ti mas olham para a obra do doutor.
Porque aquilo em que te transformas aos bocados está ao alcance de todos.
Basta tempo e carteira , mas pronto.
Ainda que não saibamos já quem somos (repara que também implantei cabelo) gostava de pensar que nos sentimos melhor (será que me restam comprimidos para esta noite?).
Porquê este desconforto constante?
Procuro-te os olhos, na esperança de reencontrar ainda o que resta de ti.
Diz, querida? Foste hoje colocar lentes de contacto azuis?
Nao , mal nenhum ,desde que te sintas bem."
Texto de Rodrigo Guedes de Carvalho
porque não nos aceitamos como somos???